Sobrevivente de acidente, jovem luta pelos direitos das pessoas com deficiência

Augusto Sarmento - Reportagem
Reportajen : Joana Silva
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“Pessoas com deficiência têm todo o direito de serem integradas na sociedade e tratadas com respeito”, ressalta Martinha/Foto: Arquivo Pessoal

Díli (timorpost.com) – Aos 18 anos, Martinha Gomes teve um acidente enquanto viajava de autocarro para o seu município e viu a sua perna esquerda ser amputada. Uma história trágica, que certamente leva cada leitor a pensar nos perigos das estradas de Timor-Leste ou nos sonhos que se dissolvem na vida de uma jovem que perde uma parte do seu corpo. Seria um caso (mais um) para lamentar, para sentir pena, para olhar de lado. Mas não.

A vida de Martinha mudou depois do acidente. O seu corpo mudou. A mentalidade também. Nos primeiros anos, a jovem não conseguia ultrapassar os traumas do acidente, porque “pensava que já não tinha mais valor e queria morrer para largar logo todo aquele sofrimento”.

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Passaram-se horas, dias e anos. A jovem, com a ajuda dos amigos, da família e de pessoas próximas começou a abrir o seu pensamento e, pouco a pouco, a adaptar-se à nova realidade. Decidiu envolver-se em organizações direcionadas para as pessoas com deficiência e conseguiu terminar o ensino secundário

Nos últimos meses de 2022, a empresa de Consultoria Jurídico Social (JU,S), focada no fortalecimento dos direitos humanos e da igualdade de género, abriu um concurso para atribuição de bolsa para mulheres com deficiência.

Além do pagamento de propinas universitárias, alojamento, alimentação, materiais didáticos e um valor para a selecionada, o benefício – resultado de uma parceria entre a JU,S e Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL) – garantia uma vaga no curso de Direito. Martinha concorreu e obteve a bolsa.

“Naquela altura, a diretora da Community Based Rehabilitation Network Timor-Leste (CBRN-TL) aconselhou-me a concorrer, mas recusei. Num outro momento, a minha amiga do ensino secundário convenceu-me a concorrermos as duas. Então, submeti os meus documentos e, logo depois, fui chamada para a entrevista. Por fim, fiz os exames escritos e acabei por ser a única escolhida, entre sete mulheres”, contou Martinha.

Posteriormente, os funcionários da JU,S acompanharam-na na preparação de documentos para se registar na UNTL e neste momento Martinha está a frequentar o curso.

A noite do acidente

Em Timor-Leste, nas férias escolares, a maioria dos estudantes de outros municípios vai para a terra natal, para matar saudades dos familiares ou ajudar os pais em algumas tarefas, no campo, por exemplo.

Na madrugada de 20 de dezembro de 2015, Martinha, que residia em Díli, decidiu viajar para Lautém, na parte leste do país. Apanhou o bus (lê-se “bis” em tétum – autocarros que transportam passageiros de Díli para os municípios e vice-versa) de Baltimor, no terminal de Becora. Segundo a jovem, ainda não tinham passado 15 minutos da viagem, quando, de repente, o bus capotou várias vezes na encosta de Fatuahi.

“Muitas pessoas gritavam, horrorizadas. Dentro do autocarro, procurei alguns objetos para me agarrar, mas não consegui encontrar. Não sei como é que consegui sair do bus. Sei que desmaiei e, quando fiquei novamente consciente, consegui deitar-me na terra batida e não me consegui mover a partir daí. Senti que o meu corpo estava a ficar pesado, sobretudo a minha perna esquerda”, narrou a sobrevivente.

Entre as muitas pessoas que se juntaram em volta do autocarro, apareceu o irmão, que a tinha levado a Becora. “Fiquei admirada quando o vi. O Gil (irmão) começou a chorar de imediato, mas eu não chorei. Se não me engano, naquele momento, ele já se tinha apercebido de que a minha perna esquerda estava desfeita. Mas, com o choque, eu própria não tinha noção e, por isso, fiquei calma”, recordou.

Só mais tarde é que o irmão descreveu a história do resgate, já que Martinha, gravemente ferida, alternava-se entre momentos de lucidez e inconsciência. Gil teve de pedir ajuda a outras pessoas que se encontravam no local para trazer o corpo da irmã para a beira da estrada. Quem tentava ajudar, gritava também por socorro e pedia que algum carro parasse. “Parou um Toyota que me levou até ao Hospital Nacional Guido Valadares (HNGV). O carro transportou mais dois feridos além de mim. Um deles não sobreviveu”, lembrou Martinha, com um olhar triste.

A jovem, atualmente com 25 anos, conta que, até hoje, ainda não sabe o motivo do acidente. As pessoas têm narrado diferentes histórias a cerca das causas. Alguns dizem que o autocarro capotou porque o motorista se atrapalhou enquanto estava a tentar acender um cigarro, enquanto conduzia. Ou então estava com sono, contam outras pessoas. Outros comentam que foi alguma falha no motor, nos travões ou noutro elemento mecânico.

Momentos após o resgate, soube depois Martinha, os médicos realizaram uma cirurgia e amputaram a sua perna esquerda, acima do joelho, por não conseguirem remediar os ferimentos. “Nos dias seguintes, eu não sabia de nada.A minha família sabia e não teve coragem para dizer que me tinham amputado uma perna”, relembrou.

Cerca de uma semana depois, o pessoal de saúde foi ao quarto da Martinha, para trocar o penso e tratar da medicação. “Os médicos trataram os meus ferimentos e trocaram os pensos. Foi nesse momento que percebi onde acabava a minha perna esquerda, em comparação com a direita. Entrei em choque, fiquei histérica. Não queria aceitar que aquilo tinha acontecido”, disse

Quando Martinha estava internada no hospital, o pai acompanhou-a/Foto: Arquivo Pessoal

Internada no hospital durante quase três meses, foi recebendo visitas de familiares e colegas. Se, junto da família conseguia conviver e esboçar alguns sorrisos, quando os amigos e amigas a visitavam, Martinha tapava a cara com o lençol. Sentia-se envergonhada e triste, ficava calada, sem pronunciar uma única palavra. Conta, com um ar triste, que “quando me visitavam (amigos e amigas) recordava sempre os momentos bons em que andávamos juntos. Já nada iria ser igual. Sentia-me de coração partido e sentia que agora era diferente”.

A dor fantasma

Ainda antes de saber que lhe tinham amputado a perna, nos primeiros dias de internamento, Martinha sentiu comichão na perna esquerda e pediu ajuda ao irmão para coçar. Imediatamente, o rapaz começou a chorar, mas a jovem, ainda a recuperar os sentidos, não questionou o motivo.

Hoje a Martinha sabe que o que sentiu naquele momento foi uma “dor fantasma”. A situação repetiu-se mais tarde, já plenamente consciente do que tinha acontecido. Além de comichão, a estudante de Direito sente regularmente dor ou impressão na região amputada.

Estas sensações são alguns dos indícios do que vulgarmente se chama dor fantasma. A ciência explica que esses sintomas surgem a partir das terminações nervosas da parte amputada que, apesar de terem sido decepadas, continuam a emitir sinais para o cérebro.

Nos casos em que a amputação ocorre de forma abrupta, na sequência de um acidente, por exemplo, em que o paciente não tem tempo para se “preparar” para a perda de uma parte do corpo, o cérebro acaba por não reconhecer que esse membro já não existe e continua a enviar sinais como se ainda lá estivesse.

Apesar de existirem tratamentos, sejam eles terapêuticos, de medicina alternativa ou através de medicação, Martinha conta que em Timor-Leste nunca encontrou uma forma de acabar com as comichões ou dores na perna esquerda. “Não é algo que aconteça todos os dias. É uma sensação estranha que pode durar alguns minutos ou horas, mas acabo por lidar com naturalidade. Sei que há situações em que as pessoas entram em paranoia”, confessa a jovem.

A vida depois do acidente

Depois de sair do hospital, Martinha ainda manteve a postura retraída. Ficava dentro de casa, sentada na cadeira de rodas, “porque não tinha ninguém para me motivar a viver esta nova vida”. Chegou a pensar em suicídio, admitiu.

Foi em conversas com um amigo, que também teve a perna amputada, que Martinha começou a mudar a forma de encarar a vida. Os dois, através do Facebook, começaram a partilhar com regularidade ideias sobre as condições e as situações que tinham de enfrentar. A partir daí, a jovem percebeu que não era um caso isolado e que, se havia pessoas que conseguiam realizar sonhos apesar das limitações, ela também poderia conseguir.

Em agosto de 2016, passou algum tempo no Centro Nacional de Reabilitação, em Becora. Era lá que tinha sessões de fisioterapia. O Centro foi recomendado pelos médicos, para que pudesse avançar com os tratamentos. Lá, também recebeu muletas e uma prótese. Para Martinha, a experiência de usar as muletas pela primeira vez foi como “voltar a viver”. “Fiquei muito contente, porque já me conseguia levantar e andar”, disse.

A jovem não perdeu a vontade nem a esperança de voltar a estudar, mesmo que a mãe não a deixasse, devido ao medo dos problemas que poderia encontrar, a começar pela discriminação e o bullying. “Tentei procurar razões para convencer a minha mãe. Disse assim: ‘se um dia a mãe morrer, quem é que me pode sustentar?’ Depois desta conversa, ela consentiu que eu voltasse aos estudos”, relatou.

No ano seguinte, já com 20 anos, voltou a sentar-se numa sala de aulas, retomando o 11.º ano, na mesma escola que foi obrigada a abandonar (Escola 4 de Setembro). Desta vez, Martinha mudou-se para a residência docolégio da Fundasaun Ahisaun. A organização, que é gratuita e dirigida por um padre, dá apoio psicológico a pessoas com deficiência física.“Durante a minha estadia, partilhávamos as palavras da bíblia. Rezávamos terço. Recebíamos ajuda espiritual de quem ali trabalhava”, detalhou.

Em 2018, a jovem recebeu uma dura notícia: a morte do pai. Largou de novo os estudos. Foram momentos difíceis de ultrapassar, assombrada pelo medo de voltar a perder a motivação de lutar pelos seus sonhos.

Martinha mantinha-se com o auxílio do governo atribuído às pessoas com deficiência e economizava o que podia. Desde 2017, a jovem tem recebido semestralmente um subsídio pecuniário de 180 dólares americanos, ou seja, 30 dólares por mês.

Passados dois anos da perda do pai, Martinha conseguiu frequentar o 12.º ano, desta vez na Escola Técnica Informática, em Metinaro. “Fiquei no colégio de outra Fundação, a Ahisaun Metinaru. Pagava 10 dólares por mês para poderem comprar os nossos alimentos. A moradia era garantida”, explicou.

A jovem durante formação à comunidade de Metinaro/Foto: Arquivo Pessoal

O primeiro trabalho

Em 2021, Martinha, a mais nova de oito filhos, conheceu uma organização, a Community Based Rehabilitation Network Timor-Leste (CBRN-TL), através da uma amiga e decidiu tentar trabalhar neste grupo. A organização apoia as pessoas com deficiência, promovendo formações e ações de sensibilização junto às comunidades.

“A minha amiga ajudou-me a fazer o curriculum vitae (CV). Um dia, resolvi entregar o documento e fui logo chamada para trabalhar. Nos primeiros meses, fiz o meu trabalho como voluntária”, afirmou.

Na organização, aprendeu muito, sobretudo sobre as questões de género e o tratamento da pessoa com deficiência. Antes de entrar na CBRN-TL, Martinha baixava a cabeça quando a chamavam de “aleijada” ou de “anormal”.

“Eu pensava que era uma forma de tratamento normal, apesar de me deixar triste. No fundo, ainda não conhecia a terminologia, nem tinha noção de que as pessoas com deficiência têm todo o direito de serem integradas na sociedade e tratadas com respeito”, observou a estudante da UNTL.

Um dia foi chamada pela diretora da organização para dar formação a uma comunidade, em Metinaro. Teve, pela primeira vez, a oportunidade de falar em público sobre os direitos das pessoas com deficiência. A partir daí, Martinha seguiu, em representação da CBRN-TL, para os restantes municípios de Timor-Leste, para esclarecer os cidadãos sobre a importância de se respeitar aqueles com alguma condição diferenciada.

Acessibilidade no espaço público

Após o acidente, Martinha deixou de andar de microlete, por medo da reação de outros passageiros e condutores. Porém, cinco anos depois do ocorrido, numa tarde, por voltas das seis horas, as colegas obrigaram-na a apanhar um veículo, porque não havia outras alternativas.

“Naquela altura, estávamos a voltar da gruta de Golgota, depois de fazer a nossa oração. Já não havia táxis, apenas circulava a microlete 10. Primeiro, rejeitei essa opção, mas as minhas amigas insistiram e encorajaram-me a entrar. Então, elas entraram primeiro, e, em seguida, coloquei as minhas muletas dentro da carrinha, agarrei-me à porta e entrei logo. Correu tudo bem”, contou, com uma gargalhada.

Hoje, já apanha o meio de transporte normalmente, mas as reações das pessoas nem sempre são as melhores. Mesmo que não seja por maldade, ficam assustadas, não acham normal e chegam a chamar de coitada. Alguns tentam ajudá-la a subir ou a descer do veículo, contudo “se alguém me segura as mãos, não me consigo mover. Por isso, agradeço, mas rejeito sempre a ajuda”, disse.

Sobre as pessoas com necessidades especiais no espaço público, a jovem diz que são inúmeras as dificuldades que têm de enfrentar no dia a dia. Uma grande parte está na falta de infraestruturas adaptadas a pessoas com mobilidade reduzida.

“Por exemplo, a UNTL, sobretudo na minha Faculdade, não tem rampas de acesso para as pessoas com deficiência. Quase todos os dias, sou obrigada a subir e descer escadas. Muitas vezes, as muletas magoam-me os braços, mas o que é que eu posso fazer?”, lamentou.

A discriminação é outro dos problemas graves e surge muitas vezes no meio familiar. Mudar mentalidades é muitas vezes um processo demorado. Mas, é com o objetivo de transformar esta realidade que a jovem quer continuar a sua luta, na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, sobretudo as mulheres. “Quero ajudar as minhas colegas a lutar pelos nossos direitos, como cidadãs timorenses”, concluiu.

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