Timor Post – Por volta das duas da manhã de um sábado, momento em que o frio cobria algumas partes de Timor-Leste, pessoas de uma família acordavam para matar uma vaca, no intuito de vender a sua carne no mercado. Entre os elementos do grupo, havia uma menina curiosa, ávida por descobrir como se dava o abate.
A miúda, que não quis apresentar a sua identidade, contou que um tio, logo ao despertar, pegou na catana e na lanterna e se dirigiu ao local onde uma vaca estava atada pelo pescoço a uma árvore.
“O tio, com a catana, primeiro perfurou o estômago do animal, que berrou com tamanha dor. Pelo chão de terra batida, o sangue espalhava-se. Em seguida, sem hesitar, o velho cortou perna por perna da vaca, que, caída no chão, se debatia desesperadamente. A cada instante, contudo, o clamor do animal diminuía, até que, em menos de 10 minutos, parou de respirar. Momento em que o tio e outros membros da família começaram a cortar o animal em pedaços”, narrou a menina.
Em Timor-Leste, muitas pessoas seguem a mesma tradição de abater dolorosamente os animais, seja para depois vender a carne ou para consumi-la entre a família. Esta forma de matar os animais em lugares aleatórios ainda é muito comum no país. Nesses ambientes, vacas, porcos, búfalos, cabras, galinhas e demais animais são mortos de maneira cruel. Como são lugares sem as condições sanitárias necessárias, a carne desses animais fica exposta a riscos de contaminação.
Na tentativa de assegurar a saúde pública, o governo timorense criou, em 2014, o decreto-lei n.º 10/2014, que versa sobre o Regime de Licenciamento dos Matadouros. Em algumas linhas, a legislação estipula que o “abate de animais das espécies bovina, bufalina, ovina, caprina e suína só pode fazer-se em matadouros ou casas de matança licenciados para o efeito pela Direção-Geral da Agricultura e Pecuária, com exceção do abate destinado estritamente ao autoconsumo”.
De acordo com o decreto-lei, aplica-se uma multa que pode chegar até 3 mil dólares americanos para quem desrespeitar as condições previstas, além da interdição imediata do local por tempo indeterminado.
Carne vendida em condições inadequadas e sem fiscalização
Nos municípios, a venda de carne em grande escala apenas acontece aquando da abertura dos mercados locais. Em Baucau, por exemplo, o mercado funciona às quintas-feiras e aos domingos. Nesses dias, quem quiser encontrar carne tem de acordar cedo.
Maria Guterres, funcionária da Organização Não-Governamental (ONG) Fokupers, é uma das pessoas que compra carne no mercado. “Se estiver na minha terra natal, temos de ir às 6h para encontrar carne fresca, porque as pessoas acabaram de matar”, contou.
Nos mercados, detalhou a consumidora, prevalece um odor desagradável. Os vendedores expõem o produto sobre folhas (de bananeira ou coco) ou papelão, colocadas em cima de mesas feitas de bambu, zinco ou madeira.
“Nas bancas desarrumadas, há carne cheia de sangue, com muitas moscas em volta”, apontou indignada.
Para confirmar sobre o assunto, o Timor Post foi ao mercado de Taibessi, em Díli, e conversou com alguns vendedores de carne. A jornalista também viu quase o mesmo cenário descrito por Maria Guterres. No ambiente onde as carnes são vendidas, os pedaços ficam ao ar livre, sobre as mesas. Para tentar afastar as moscas, os vendedores ficam sempre a abanar com qualquer coisa que tenham à mão.
Francisco Freitas, vendedor de carne há 8 anos, contou que o Governo chegou a oferecer um espaço específico no mercado para o comércio do produto. Porém, sem qualquer estrutura mínima. “Havia torneira, mas não tinha água”, queixou-se.
O vendedor relatou que a carne no seu negócio é de algum animal morto por ele mesmo e a sua equipa. O homem adquire vacas de diversos municípios e leva-as para um matadouro em Camea, em Becora. Confessa que não sabe quais as condições sanitárias dos animais que compra. Numa noite, Francisco e os ajudantes conseguem matar até três vacas. “Cada noite abatemos pelo menos uma”, afirmou. Após terminar o serviço, os pedaços são levados para o mercado. Aquilo que não é vendido vai para um frigorífico e, no dia seguinte, a carne volta a ser colocada em cima da mesa.
Francisco declarou que nunca frequentou uma formação específica sobre como abater um animal. “Desde cedo, acompanhei os mais velhos, até conseguir abater sozinho. Não conheço os procedimentos oficiais dos matadouros legais”, admitiu.
Sobre a fiscalização, o comerciante relatou que “alguns grupos das autoridades” chegaram, poucas vezes, a inspecionar o matadouro em Camea e o mercado em Taibesi. A investigação, contou, resumiu-se a poucas perguntas. “Perguntaram quando o animal foi abatido, de onde a vaca veio e só. Não houve outros apuramentos”, exemplificou Francisco.
Alípio de Almeida, professor do departamento de Saúde Animal na Universidade Nacional Timor Lorosa´e (UNTL) e membro da Associação Médico Veterinária de Timor-Leste (AMVTL), reconheceu que, nos matadouros ilegais, não há gente especializada para fazer inspeção sobre as condições dos animais, antes e depois de serem mortos.
“As pessoas que matam os animais para vender carne não conhecem os procedimentos legais. Não lavam bem a carne, que pode ficar com micróbios. Isto significa que o produto não é saudável e pode contaminar alguém”, observou Alípio.
Segundo o veterinário, Timor-Leste apenas tem um matadouro oficial de bovinos, localizado em Tibar, em Liquiça. “É impossível este matadouro oferecer toda a carne de vaca às lojas e à população do país. Precisamos de alargar matadouros nacionais e oficiais de carne bovina. Ao mesmo tempo, temos de criar novos matadouros para búfalos, ovelhas, cabras e porcos”, alertou.
Em relação à pouca fiscalização, Domingo Gusmão, Diretor Geral de Pecuária e Veterinária declarou, sem dar detalhes, que as inspeções são realizadas, tanto nos locais de abate de animais como nos lugares de comércio – como manda o decreto-lei.
O Diretor considerou enviar uma equipa para vistoriar o mercado de Taibessi. “Se for necessário, vou mandar os técnicos para regularizar a situação em Taibessi”, afirmou.
Animais doentes e os riscos para a saúde
Muitas famílias em Timor-Leste, ao perceberem que um animal está com sinais de que irá morrer, como por exemplo fraqueza, matam-no para não desperdiçar o alimento. “Quando vimos que alguns frangos já não têm força para andar, então matamo-los. Às vezes, encontramos objetos como plásticos no papo. Ou não encontramos nada, mas ficamos conscientes de que os animais têm doenças. Porém, não sabemos nada sobre o tipo de doenças”, disse Maria Guterres, com uma gargalhada.
Por sua vez, o professor Alípio de Almeida enfatizou que as pessoas devem evitar consumir a carne dos animais que demonstram algum aspeto negativo, já que podem ser transmitidas doenças. “Zoonoses são doenças passadas de animais para pessoas, através do contacto direto com os infetados. Por isso, nós, médicos veterinários, não recomendamos a ninguém consumir carne de animais doentes”, explicou.
Recentemente, um surto de raiva na Indonésia deixou as autoridades do país e de Timor-Leste em alerta. A raiva é uma doença que afeta o sistema nervoso e central e pode levar à morte, sendo transmitida através da mordida de um animal infetado com o vírus, como um cão. Os sintomas iniciais nos seres humanos envolvem febre, dor de cabeça, fadiga, perda de apetite e náuseas.
Recomendações
A nutricionista Rosaria Martins aconselhou os cidadãos timorenses a consumir carnes que sejam vendidas em talhos, já que estes lugares apresentam maior rigor no armazenamento dos produtos e melhores condições de higienização (sanitárias). Rosaria ainda alertou para que a carne de animais vacinados não seja consumida por, no mínimo, uma semana após a imunização.
Observação corroborada pelo médico veterinário. “Os medicamentos dos animais podem passar para o nosso corpo, o que pode prejudicar a nossa saúde”, argumentou Alípio de Almeida.
A nutricionista também orientou as pessoas a balancear a dieta com a inclusão de vegetais. “Carboidratos como milho, mandioca, batata, batata doce e arroz dão força. No caso das proteínas vindas das plantas, destacam-se o feijão, soja, grão-de-bico, brócolos, cogumelos, tofu, lentilhas, amendoins e cajus. Frutas também merecem atenção”, ressaltou Rosaria.
Para ter refeições completas, a nutricionista recomendou aos cidadãos a leitura de um livrinho de receitas que explica os grupos de alimentos, o manual intitulado Reseita Hahán Saudável ba Bébe, Labarik, Inan no Família (Receitas de Comidas Saudáveis para os bebés, as crianças, as mães e Família, em português), ao qual se pode ter acesso através do endereço:
https://www.unicef.org/timorleste/media/5221/file/Recipe%20Book%20(Tetum)_compressed.pdf
Questionados sobre a falta de informações à comunidade, a nutricionista e o professor reconhecem que são poucas as pessoas que possuem conhecimento adequado a respeito de alimentação saudável. O professor sugeriu que o Governo desenvolva ações de consciencialização e promoção sobre a importância de uma alimentação equilibrada. E também implementar uma política que seja capaz de reduzir drasticamente os índices de subnutrição no país.
Um estudo divulgado no início deste ano pelo Ministério da Agricultura e Pescas (MAP) indica que 300 mil timorenses sofrem de insegurança alimentar. De acordo com os dados do Índice Global da Fome (IGF) de 2022, Timor-Leste ocupa o 110º lugar entre 121 nações. A posição revela a gravidade da questão da má nutrição no país. O IGF é um relatório com base em estudos sobre a fome a nível mundial.
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