Só teve a primeira bicicleta aos 24 anos, graças a uma oferta. Ter de pedalar em bicicletas emprestadas não a impediu de perseguir o sonho do ciclismo e de triunfar nele. Hoje, aos 38 anos, soma no seu percurso participações em várias competições nacionais e internacionais, chegando mesmo a sagrar-se vencedora do Tour de Timor. Os triunfos ganham maior relevância num país onde os apoios oficiais aos desportistas são escassos e os veículos motorizados são “reis e senhores” nas estradas, os ciclistas correm perigo pela mera circulação em vias onde muitos não sabem nem cumprem o código de estrada e onde as ciclovias são inexistentes.
Francelina Marques Cabral, segunda filha de 11 irmãos e mais conhecida por Anche Cabral, natural de Lautém, desde cedo fascinava-se a olhar para bicicletas. Obstáculos começaram desde cedo: quando criança, sem ainda saber pedalar, sentava-se em cima do selim de bicicletas estacionadas nas ruas, nas portas de casas e, não raro, caía. Recorda-se de estar a assistir a uma competição na sua terra natal, quando foi abalroada por uma bicicleta. Tanto aquelas quedas como este episódio não lhe enfraqueceram o gosto pelo ciclismo. Mais tarde, no 3.º ciclo e com cerca de 11 anos, deparou-se com a missão de ajudar um sobrinho a aprender a andar de bicicleta. Um primo desafiou-a a pedalar. Missão e desafio aceites. “Afinal, consegui conduzir uma bicicleta, mas ainda não era profissional”, recorda, com uma gargalhada.
Foi o ponto de partida para que, desse momento em diante e durante a infância, sempre que se deparasse com uma bicicleta, pedisse aos donos para a usar, porque não tinha a sua própria, circunstância que só viria a ocorrer já adulta, com 24 anos. Até esta idade, usar bicicletas emprestadas era a única forma de poder continuar a pedalar.
A estreia a competir
Em 2002, na véspera da restauração da independência, Anche Cabral estudava no ensino secundário, no Colégio de Fuiluro, em Lautém, quando participou pela primeira vez numa prova de ciclismo. Tinha 17 anos. No Colégio, as madres tinham bicicletas que a jovem podia usar, quase diariamente.
Um dia, ouviu dizer que os padres tinham criado uma competição de ciclismo, mas só para homens. Na altura, a sociedade timorense não atribuía importância à igualdade das oportunidades ou de género. Porém, quatro mulheres, Anche e mais três amigas, por iniciativa própria, conseguiram convencer a comissão organizadora a deixá-las participar no evento. Sem dinheiro para se registar (meros 25 centavos), teve a ajuda de uma amiga para aquele efeito. De facto, falta de dinheiro não era conceito estranho a Anche, embora não a preocupasse muito, como a própria refere ao afirmar que “andava sempre feliz”. Ainda assim, para não sobrecarregar os pais reduzia “as idas a casa nas férias a uma ou duas vezes por ano”.
E a competição de ciclismo inicialmente reservada a homens? “Na realidade, as mulheres não venceram, mas foram quem recebeu os prémios. O cenário mudou na cerimónia da distribuição de prémios. A minha amiga ocupou o primeiro lugar e eu o segundo”, numa circunstância que terá sido uma estratégia da comissão organizadora para motivar mulheres a participar na corrida ou, na opinião de Anche Cabral, “participar ativamente em qualquer atividade”.
Os primeiros obstáculos surgiram fora das ‘pistas’
Em 2003, depois de terminar o ensino secundário com um curso técnico-vocacional na área veterinária, em Lautém, Anche Cabral quis continuar os estudos no ensino superior para se tornar médica de animais. Porém, a falta de dinheiro dos pais impossibilitou tal pretensão. Foi então trabalhar para uma loja em Díli. “O meu primeiro salário foram 100 dólares.” Tinha 18 anos. Na mesma altura, uma amiga que trabalhava num dos departamentos do Instituto Católico para a Formação de Professores (ICFP), também conhecido como Maristas, em Baucau, tinha conhecimento que Anche Cabral saiba fazer ilustrações. A jovem recorda: “A minha amiga disse-me que o projeto tinha aberto uma vaga para ilustração de livros de infância, mas rejeitei, porque não tive autoconfiança. A minha amiga insistiu e aconselhou-me. Finalmente aceitei a proposta”. O salário era menor do que na loja, mas, pensa agora, “em contrapartida, o trabalho trouxe-me mais experiência e conhecimentos, como a aprendizagem do inglês. Todos os dias tinha uma hora de aula de língua inglesa antes do horário de trabalho”.
/Foto: Arquivo pessoal.
No ano seguinte, em 2004, depois de ver o trabalho desenvolvido pelos colegas professores nos Maristas, a então ilustradora apaixonou-se também pela área da formação para professores para o ensino básico e, especificamente, em metodologias de ensino-aprendizagem. Alguns colegas, formadores e professores do ICFP capacitaram-na para desempenhar funções de formadora. “Quando os meus colegas ensinavam e usavam diversos métodos, notei que a brincar também podemos aprender.”
Aos 19 anos, enquanto desempenhava funções de formadora e ilustradora nos Maristas, surgiu a oportunidade de estudar na Austrália, e concluir o bacharelato e respetivo mestrado em Educação na Universidade Católica Australiana, em Sydney. O Instituto disponibilizou-se para pagar estes estudos, que frequentou maioritariamente através do ensino à distância e concluiu em 2012.
Timor-Leste como palco da primeira participação em competições internacionais
No início de 2009, ano em que ainda trabalhava no ICFP, foi informada pelo marido de uma colega de trabalho, que também era ciclista, de que ia acontecer o primeiro Tour de Timor por iniciativa do então Presidente da República, José Ramos-Horta. A corrida internacional de Mountain Bike, modalidade de ciclismo que consiste em realizar percursos em montanhas e outros terrenos irregulares, seria uma forma de dar a conhecer o país ao mundo e eventual força motriz para o desenvolvimento do turismo. Ficou entusiasmada com a notícia, mas não tinha uma bicicleta sua para treinar. Como os dois queriam participar na competição, Abe Yoga arranjou mais uma bicicleta, novamente emprestada. A partir daí conseguiram treinar juntos quase todos os dias tendo em mente o Tour.
Baucau foi o ponto de partida para diferentes treinos com distâncias variadas. Treino após treino foram aumentando as distâncias percorridas para experimentar diferentes desafios.
Em abril, véspera da Páscoa desse ano, por volta das seis de manhã, elevaram a fasquia como até então não tinha ainda acontecido. Juntos pedalaram até Díli, num percurso que levou 12 horas a trilhar. A ciclista recorda que conseguiu superar o desafio sem grandes contratempos, “embora nos treinos anteriores tivesse tido dificuldades em pedalar nas subidas”.
O esforço da jovem atleta não passou despercebido e acabou mesmo por lhe valer a sua primeira bicicleta, fruto da boa vontade de uma cidadã australiana com quem trabalhava nos Maristas e que também a ajudava nos seus estudos. Tinha 24 anos.
Os 126 km que separam Baucau de Díli já eram um desafio ultrapassado. Anche via crescer o seu interesse pela modalidade numa ótica mais profissional. Juntou-se a vários movimentos de ciclismo e deslocou-se várias vezes à capital aos fins de semana para participar em momentos de formação sobre a modalidade.
Em julho, 57 pessoas, incluindo cinco mulheres, concorreram às 25 vagas para a representação de Timor-Leste no Tour, que se realizava anualmente. “Entre estas mulheres, fui a única selecionada”, recorda com satisfação. A prova que selecionou os atletas que viriam a integrar a seleção nacional de ciclismo foi, justamente, através de uma competição de ciclismo em Díli. O trajeto começou no Palácio Presidencial, passou por Becora até Hera, seguiu-se o Cristo Rei, via marginal até à Praia dos Coqueiros e, por fim, regressaram ao Palácio.
A então seleção nacional timorense, de que Anche Cabral fazia parte, recebeu um mês de apoio de formação profissional numa base das Forças Armadas, em Baucau, ao mesmo tempo que mantinha funções no ICFP. A ciclista teve de gerir bem o tempo para conseguir conciliar o emprego com a atividade desportiva. “Aproveitava para treinar antes e depois do horário de trabalho.” Esta gestão do tempo, ainda que suficiente para treinar, não bastou para garantir que conseguiria estar presente naquela que seria a sua primeira competição internacional e para a qual se preparava há meses. A determinação esbarrou com constrangimentos impostos pelo responsável do Instituto que a empregava. Este, algo inflexivelmente, achava que a jovem não deveria faltar a algumas aulas para poder competir. A ciclista fez de tudo para o convencer. Propôs um tutor para a substituir temporariamente, sugestão que acabaria por ser aceite. Outro desafio superado.
No primeiro dia do Tour de Timor, marcaram presença na linha de partida mais de 300 participantes, provenientes de 12 países, nos quais se incluíam a Austrália, a Indonésia, a Malásia e Singapura. A competição decorreu entre 24 e 28 de agosto para comemorar o Dia da Consulta Popular e dividiu-se em cinco etapas. A primeira etapa foi entre Díli e Baucau, onde Anche Cabral morava e trabalhava. Nos dias seguintes, seguiram-se as etapas que culminaram em Loihunu (Viqueque), em Betano (Manufahi), em Maubisse (Ainaro), até terminar de novo na capital. Ao fim de cada etapa, havia prémios para cada vencedor e os pontos eram contabilizados. Somados, encontraram-se os vencedores da competição.
A jovem ciclista não recebeu qualquer prémio, mas sentiu ter sido muito gratificante competir. Colegas professores e alunos apoiaram-na ruidosamente na chegada a Baucau, que marcou o fim da primeira etapa. “Quando eu passei, eles usavam cartazes com a minha fotografia, ao mesmo tempo, gritavam o meu nome”, recorda com orgulho.
A primeira vitória numa competição internacional
Após a primeira participação no Tour de Timor em 2009, continuou nos anos seguintes e, em 2012, quando já ia na quarta participação sem vitórias e numa altura em que conciliava o ciclismo com a docência, foi chamada para trabalhar numa companhia aérea que acabaria por começar a patrocinar a sua prática desportiva. Encontrou, ao mesmo tempo, um novo trabalho e um patrocinador. A partir daí, começou a treinar profissionalmente. Em maio de 2013, entre os muitos treinos que fez, a jovem foi de bicicleta até ao cimo do monte Ramelau (2,967 metros de altitude) para se preparar para o torneio seguinte, que seria o seu quinto Tour de Timor e que teria lugar em outubro do mesmo ano. “Fui treinar e ao mesmo tempo rezar para, desta vez, conseguir vencer.”
/ Foto/Arquivo Pessoal.
Cinco meses depois, lá estava ela a ocupar novamente a sua posição na linha de partida do Tour e, apesar de um grave percalço, acabou, finalmente, por conquistar o primeiro lugar da prova. “No antepenúltimo dia da competição, tive um acidente e parti o ombro esquerdo. Mesmo assim, não desisti de pedalar. As lágrimas acompanharam as dores. Uma ambulância andou atrás de mim, mas eu não saí da bicicleta. Se eu fosse de carro, podia perder os pontos que já tinha conquistado.”
Relativamente ao triunfo, destaca ter ficado “muito contente, porque fui a primeira mulher timorense a obter aquele primeiro lugar. Recebi quatro mil dólares de prémio, pela participação como atleta na categoria de internacional. Adicionados ao prémio da categoria nacional, foram no total por volta de sete mil dólares”, recorda com um sorriso nostálgico.
Anche Cabral é uma das poucas atletas timorenses que participou em todas as edições do Tour de Timor durante os 10 anos em que a competição teve lugar, entre 2009 e 2018. Os seus triunfos ganham maior relevância num país onde os veículos motorizados são “reis e senhores” nas estradas, os ciclistas correm perigo pela mera circulação em vias onde muitos não sabem nem cumprem o código de estrada e onde as ciclovias são inexistentes.
Competições no estrangeiro: enfrentar obstáculos gera experiência
Em outubro de 2011, pela primeira vez, a jovem e dois colegas conterrâneos competiram durante quatro dias na Austrália. O evento chamava-se Kep Too Kep. Participaram por volta de 12 mil pessoas de diferentes países, mas a maioria foi, naturalmente, de nacionalidade australiana. A distância da corrida não era longa, mas o caminho foi estreito para tantos participantes. Aquele evento chamou a atenção da atleta, porque nunca tinha pedalado nestas condições. “Foi um grande desafio.” A prova foi concretizada ainda que a participação tenha sido “surpreendente e traumatizante”, relembra.
Em representação do país no estrangeiro, competiu também na Malásia (em 2012 e 2014), nos Sea Games – Jogos do Sudeste Asiático, em Myamar (em 2013), na prova da ASEAN Mountain Bike, nas Filipinas (em 2015) onde conquistou um 3.º lugar, porque “este modo de competição era aquele em que em me sentia mais à vontade”. Competiu também nos Jogos Olímpicos Rio 2016 e, finalmente, na ASEAN Games na Indonésia (em 2019).
“Competir fora do país não foi fácil. Encontrei pessoas de diferentes países, experimentei diferentes vivências e obtive conhecimentos diversos. Portanto, nós [atletas timorenses] também precisamos de muita preparação e cuidados, por exemplo, uma alimentação regrada e cuidados de saúde, para competir com outros oriundos de nações que investem nos atletas desde cedo”, afirma, em súmula, a jovem. E, em forma de lamento, contrapõe: “a maioria dos atletas timorenses quer e gosta de treinar e competir, mas a falta de recursos financeiros, equipamentos entre outros, não os ajudam. Pronto, não vamos exigir, mas temos de fazer a nossa parte”.
Atualmente trabalha na UNICEF, mantendo assim o vínculo à área da educação. Fora do trabalho, continua a praticar várias modalidades desportivas para completar uma rotina de exercícios físicos, nomeadamente basquetebol e futebol. Outras pequenas paixões, como aventuras e acampamentos, são atividades que gosta de realizar para explorar lugares turísticos no próprio país, bem como para “refrescar a mente”.
Hoje com 38 anos, Anche Cabral não largou o ciclismo e ainda pedala. Como sempre pedalou na vida.
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