Ela Variana: “a liberdade de expressão em Timor-Leste é só um slogan”

Augusto Sarmento - Segurança
Reportajen : Joana Silva
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A jovem ativista alega ter sido ameaçada pela PNTL/ Foto: Arquivo Pessoal

Díli (timorpost.com) – Há menos de um mês, se falássemos no nome de Ela Variana, poucos saberiam dizer quem é. Hoje o nome da jovem ativista de 26 anos, nascida em Lautém, dificilmente passa despercebido.

Ela Variana lidera um grupo de ação feminista progressivo que nasceu no seio do Movimento da Resistência Social (MRS), para lutar contra a cultura patriarcal timorense e é finalista na Faculdade de Direito da Universidade de Díli (UNDIL).

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A sua voz ganhou força quando a Polícia Nacional de Timor-Leste (PNTL) foi buscá-la a casa para a levar ao Comando Geral para prestar declarações relativas a comentários no Facebook, que alegadamente, poderiam incitar à violência contra um líder político e que, por isso, se terão tornado virais.

Em entrevista ao Timor Post, a jovem que já apresentou queixa ao Ministério Público sobre o sucedido, fala na primeira pessoa sobre a atuação intimidatória da polícia, as ameaças que recebeu, as pressões de que as mulheres timorenses são alvo e deixa a garantia de que só se morrer é que vai deixar de criticar o que considera estar errado.

Timor Post (TP) – Recentemente publicou alguns comentários nas redes sociais, nomeadamente no Facebook, que viralizaram. Pode contar-nos exatamente o que aconteceu?

 EV –Quando John Malic, utilizador do Facebook, fez algumas publicações, com vocabulário ofensivo, que pareciam configurar insultos a um determinado líder nacional, a PNTL, por sua iniciativa, identificou-o e investigou o caso. Eu republiquei, na minha página, algumas das informações que tinham sido publicadas na página de Facebook quickinfo.tl sobre John Malic, acompanhadas de um texto em que dizia : ‘se um cidadão simples insulta um líder, a PNTL apressa-se a intervir e, eventualmente a detê-lo. Nesse caso, o povo parabeniza o trabalho da PNTL. Porém, se um líder comete o que se pode classificar como um ato imoral contra mulheres, a PNTL nada faz’. E depois, questionei: ‘a PNTL tem medo do líder?’.

Depois, apareceu um utilizador do Facebook, Julito Magno, que partilhou a minha publicação, acompanhada de palavras ofensivas relativamente a John Malic: “Uma pessoa malcriada como esta pode ser morta”. Eu respondi a este comentário da seguinte forma: “Alguém está pronto para matar um líder político por ter feito uma ação negativa contra mulheres? Se não está pronto, então não deve apontar dedo a outra pessoa!”. Na realidade, nunca pensei ou sequer sonhei em matar um líder da nação, nem foi essa a intenção do meu comentário.

A minha exigência aqui é justiça. Se algum líder praticar um ato tido por lei como criminoso, os agentes da PNTL têm de o encarar como qualquer outro cidadão deste país. Quem comete um crime, tem de assumir as consequências. A lei tem de colocar os cidadãos comuns e os líderes na mesma balança. Ou seja, a polícia tem de seguir o princípio da imparcialidade.

TP – Os polícias foram a sua casa e levaram-na para a esquadra da PNTL para prestar declarações?

EV – Sim. No dia 12 de julho, por volta das 9h, duas pessoas foram à minha casa, em Manleu. Antes de me levarem para esquadra de Caicoli, pedi-lhes para esclarecer o motivo pelo qual apareceram. Como resposta mostraram-me num telemóvel comentários que eu tinha feito no Facebook. Os agentes da polícia disseram que não podiam responder e que vinham mandatados pelo Comandante-Geral da PNTL.

Enquanto falava com o elemento sem uniforme da polícia, aproximou-se outro membro da PNTL, devidamente fardado, que me mandou calar. Respondi prontamente “Quando vocês falaram, eu ouvi! Agora que estou eu a falar, vocês não me ouvem! O agente que estava identificado respondeu, exaltado: “se fosses um homem, batia-te até  sangrares”. É óbvio que o ambiente ficou muito tenso.

Acompanhei-os ao posto de Caicoli. Depois de prestar todas as declarações, voltei para casa. Passou-se algum tempo e apareceram informações lançadas por alguns órgãos de comunicação social alegando que eu não tinha colaborado com a polícia, que eu havia resistido. Eu sabia que isto não era verdade. Fiquei revoltada.

 

“Chegaram a dizer que me iriam procurar para me matar,

porque eu, ‘tinha de pagar com o corpo’ por causa do que disse”

 

TP – Antes de publicar os comentários, tinha ideia de que as suas publicações poderiam causar tanto incómodo às pessoas?

EV – Não tinha ideia de que os meus comentários se tornariam virais. Tenho a certeza de que a minha escrita não deveria ofender ninguém. Fiz apenas uma comparação, foi uma reação natural em resposta aos comentários  de Julito Magno.

TP – Depois das suas publicações se tornarem virais, recebeu comentários e insultos?

EV – Inicialmente nem queria, mas acabei por ler muitas coisas publicadas no Facebook. Vários utilizadores comentaram que eu era filha de milícias, porque apenas as gerações de milícias é que podem pronunciar expressões que se referem a matar um líder. Ofenderam-me até com comentários em que se referiam às minhas partes íntimas. Chamara-me mulher malcriada e sem ética. Alguns chegaram a dizer que me iriam procurar para me matar, porque eu, ‘tinha de pagar com o corpo’ por causa do que disse.

TP – Recebeu mensagens privadas ou chamadas telefónicas?

EV – Sim. Recebi imensas mensagens. Algumas de apoio e solidariedade, outras com mais insultos. Nalguns casos, consegui explicar e esclarecer as minhas ideias e até me pediram desculpa.  Outros não conseguiram perceber o meu lado e continuaram a insultar-me.

“Se criticamos as elites, a nossa vida está no perigo.

Só se eu morrer é que os meus comentários críticos acabam”

 

TP – Alguns utilizadores do Facebook chegaram a ameaçá-la de morte. Pretende prestar queixa na Polícia?

EV – Para mim a polícia já devia estar a atuar relativamente a essas ameaças. Se os agentes me obrigaram a ir prestar declarações, então, também deveriam ter a iniciativa de procurar as pessoas que me ameaçaram, de acordo com as regras de um Estado de direito. A polícia tem de ser profissional.  Por isso, desde o princípio, exigi e continuo a exigir profissionalismo.

TP – Já  apresentou queixa no Ministério Público contra a PNTL. Porque decidiu apresentar queixa e que resultado espera obter?

EV – O objetivo principal é chamar atenção aos agentes da autoridade para que não continuem a praticar atos ilícitos contra cidadãos. Sabemos que o artigo 52.º do Código Processo Penal refere que a polícia deve prevenir crimes e ajudar as autoridades judiciárias nos processos. No meu caso, não entenderam o que quis dizer com o que escrevi no Facebook, e o que fizeram foi intimidar-me quando pedi que me explicassem porque estavam ali.

TP – Pretende continuar a fazer comentários críticos nas redes sociais?

EV – Sim, pretendo continuar a escrever comentários no Facebook. Considero que é um espaço público para criticar qualquer assunto. Só se eu morrer é que os meus comentários críticos acabam.  Mesmo que as pessoas me ameacem e me batam até sangrar, vou continuar a exigir o bem-estar do povo. O que está errado, temos de mostrar que está errado. Não podemos normalizar. Quero que a humanidade tenha um tratamento igual e justo.

TP – Como avalia a liberdade de expressão no contexto timorense?

EV – Acho que a liberdade de expressão em Timor-Leste é um só um slogan, porque depois de expressarmos as nossas ideias recebemos muitas críticas. Por exemplo, criticarmos entre cidadãos, muita gente acha que é normal. Se criticarmos as elites, a nossa vida fica em perigo. Muita gente considera que nós não devemos criticar os líderes, porque eles são elites que têm grande poder, são intocáveis.

“No que toca à sociedade timorense, as mulheres

são mais pressionadas e sentem-no”

 

TP – Sente receio de tocar em assuntos sensíveis? Acha que as mulheres são mais atacadas do que os homens?

EV – Para mim, assuntos públicos não deveriam ser sensíveis. São problemas comuns. Por isso, temos de falar sobre eles e, caso necessário, combatê-los. É importante não tocar ou atacar a privacidade das pessoas. No que toca à sociedade timorense, as mulheres são mais pressionadas e sentem-no.

Por exemplo, os homens saem à noite e, às vezes, só voltam passados três dias. Isto não é considerado um problema. Mas, caso uma mulher saia à noite para se divertir, a sociedade reage e acusa-a de não ser uma pessoa digna de confiança. Até os pais limitam a liberdade das próprias filhas, porque temem que sejam desrespeitadas e mal tratadas pelo sexo masculino. Na minha opinião, não podemos limitar a liberdade das mulheres. Temos é de mudar a mentalidade masculina que viola a autonomia das mulheres. Por isso, devemos colocar a liberdade e os direitos ao mesmo nível.

TP – Quando e como começou a atuar como ativista?

EV – Primeiro, em 2017, envolvi-me no movimento Klibur Estudante Progresivu (KEP), grupo que tratava de assuntos estudantis e que foi fundado na Universidade de Díli. Na altura fui informada que o KEP tinha aberto uma formação sobre política. Fiquei curiosa e quis saber mais. Pouco a pouco, comecei a perceber que o grupo abordava os  assuntos mais sensíveis do povo, como o desemprego ou a discriminação das mulheres, entre outros, e fiquei interessada. Esse grupo dá hoje em dia pelo nome Movimento de Resistência Social (MRS).

TP – Como podemos combater a injustiça social?

EV – Temos de usar todos os espaços como áreas críticas para produzir ações sociais. Queremos promover  uma cultura de literacia. Devemo-nos juntar em organizações que nos orientem para libertar o povo oprimido. É desta forma que podemos lutar contra a injustiça social.

TP – Porque é que grande parte da população não se manifesta contra a injustiça social?

EV – Porque a sociedade tem pouco pensamento crítico sobre a realidade social. Ainda não tem coragem de contradizer mensagens ou atitudes das elites. Apesar dessa mesma sociedade estar consciente de que existem  pessoas carenciadas, não tem coragem para falar contra os que estão no topo. São muitos os que não gozam a sua liberdade plenamente porque não têm coragem de exigir os seus direitos. Alguns chegam mesmo a olhar para os líderes  como santos que devem ser adorados.  Só quem não é normal é que considera que em Timor-Leste não há problemas.

TP – Para si Timor-Leste é um país verdadeiramente democrático?

EV – Quando falamos sobre democracia estamos a falar da obrigação de  tratar bem o povo. Temos de criar uma justiça social para que não existam classes baixas e altas na sociedade. Enquanto isto não acontecer, não podemos falar de democracia em Timor-Leste. Sentimos que muitas pessoas tentam limitar a nossa liberdade de expressão quando divulgamos as nossas ideias.

TP – Considera que o povo timorense é realmente livre?

EV – Não. Isto porque ainda há leis que oprimem o povo, mas privilegiam as elites. Como consequência disso não existe uma verdadeira liberdade de expressão.

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