Arte Moris, uma escola gratuita que tenta manter viva a arte em Timor-Leste

Reportajen : Joana Silva
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Entrada da sede do grupo Arte Moris, em Aitarak Laran/Foto: Joana Silva

Timor Post – Diz-nos o filósofo francês Jacques Rancière, algures no tempo, que a “política tem sempre uma dimensão estética”. E é a partir da necessidade de expressar vontades, sentimentos e pensamentos que a arte se faz acontecer, quando um sujeito tenta, com as suas obras, despertar no(s) outro(s) ideias, emoções e novas formas de ver o mundo (e, porque não, o que vai além do mundo real). Os meios para essa mensagem surgem-nos sob a forma de música, poesia, pintura, escultura, cinema, entre outros.

Raiavam as primeiras luzes da independência em Timor-Leste e a urgência dos gritos de liberdade sufocava grupos de jovens, ansiosos por viver, conhecer, saborear uma democracia acabada de criar.

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Arte Moris ou Arte Viva, em português, são duas palavras que se misturam como as tintas que os jovens usam para colorir as telas brancas. Arte e vida. A arte existe e é uma extensão da própria vida, como disseram alguns artistas da escola Arte Moris – gratuita desde o seu início. E “mesmo que a vida acabe, a obra de arte fica para contar uma história”.

Sentados na esplanada do restaurante Tavirense, já quando o sol queimava as estradas de Díli, pedimos a José de Jesus Amaral (conhecido como Tony Amaral) para nos falar da(o) Arte Moris, que possui atualmente 22 elementos ativos. A conversa começa ao ritmo do trânsito naquela hora de ponta, para quando chega o café, recomeça e pelo meio ficamos a conhecer melhor a escola que foi fundada em 2003.

O trânsito acaba por ser a metáfora perfeita para o Arte Moris. O grupo de artistas, multifacetado, encara o processo criativo a vários ritmos e de várias formas. A criação artística pode ser rápida ou lenta, barulhenta ou silenciosa, calma ou agitada. A experiência sensorial dá outro sentido ao mau odor dos veículos e ao fumo dos cigarros e cheiro a café, que acompanham as palavras do Tony Amaral.

Criação do grupo Arte Moris – Free Art School

O presidente do Arte Moris, Iliwatu Danapere, disse que, em 2002, já existia um outro grupo, que era composto por 16 pessoas. Juntavam-se no jardim de Motael para pintar. “Naquela altura, cada um de nós trazia papéis e lápis para desenhar”, conta Iliwatu.

 

Quase com as mesmas palavras, Tony Amaral, que também fez parte do grupo originário, contou que o coletivo foi liderado pelo indonésio Yayah Lambert, formado em arte. O cidadão da nação vizinha motivou, acompanhou e orientou os artistas timorenses para continuar a produzir arte.

Em 2003, Yayah deu a conhecer o suíço Luca Gansser, também ele artista, ao grupo criativo de Timor-Leste. A partir daí, o coletivo foi reestruturado. O grupo mudou-se para a casa do suíço , no bairro de Kintal Ki´ik. Foi atribuído um novo nome: Arte Moris, que permanece até à data.

O Arte Moris começou a crescer devido a um evento decorrido no Centro de Convenções de Díli (CCD), no início de 2003. A escola foi convidada pelo Instituto Camões para participar na cerimónia do lançamento de um livro lusófono. “Naquele momento, muitos jovens timorenses viram as nossas obras. Apaixonaram-se pela arte e então decidiram integrar o grupo”, afirmou Iliwatu.

Atividades na escola de arte/Foto: Reprodução Facebook (Arte Moris)

O número de formandos foi crescendo até ao ponto em que os integrantes do Arte Moris tiveram de procurar outro espaço para responder às necessidades. “Por fim, assinámos um acordo com o Secretário de Estado da Arte, Cultura, Juventude e Desporto, Virgílio Smith, do primeiro governo constitucional. Foi-nos atribuído um espaço provisório na zona de Comoro”, esclareceu Iliwatu.

Processo de ampliação das atividades

Com o novo edifício e todo o espaço envolvente, as atividades foram alargadas. Os jovens criativos começaram a organizar o tempo quase como se fosse um calendário escolar. “À noite, produzíamos as nossas obras e preparávamos as aulas. Durante o dia, éramos professores, de manhã e de tarde”, disse Tony Amaral.

No início dos trabalhos, em determinados momentos os formadores não tinham conhecimentos para introduzir regras para orientar os novos pintores. “Às vezes, reuníamos por volta de 100 pessoas num salão do antigo Arte Moris, acompanhadas por seis artistas seniores. Era uma confusão”, contou Iliwatu, com uma gargalhada.

O presidente disse que, graças às visitas e a exposições no estrangeiro – percebendo assim como é que artistas de outros países se organizavam –, os professores conseguiram criar e introduzir algumas regras básicas para o processo de ensino e aprendizagem.

Os responsáveis passaram a dividir os formandos em diferentes grupos. Seis meses para aulas de introdução à pintura, com cursos específicos de dois meses cada: desenho a lápis, aguarela e acrílico. Os seis meses seguintes eram dedicados a outras áreas.

Ao longo dos anos, conseguiram vários apoios. Para a pintura, um grande incentivo veio da embaixada da Suíça na Indonésia, que, entre 2004 e 2007, contribuiu sobretudo com materiais e equipamentos de pintura – e dinheiro para pagar despesas.

Na área do teatro, o Arte Moris também colaborou com o grupo timorense Bibi Bulak. Desta colaboração, surgiu, em 2007, um novo projeto de música. “Foi apoiado financeiramente por uma empresa de combustíveis. Sentimos que o teatro também precisava de acompanhamento de instrumentos musicais. Este programa formou muitos músicos”, disse Iliwatu.

Passados três anos, apareceu um outro projeto de multimédia. “Este programa foi inspirado na câmara de filmar de um colega neozelandês. Usámos esta câmara para fazer alguns registos audiovisuais, por brincadeira, mas depois pensámos logo na realização de aulas”. O projeto foi financiado pela embaixada dos Estados Unidos da América. A formação deu frutos e, ainda hoje, há formandos do grupo a trabalhar noutras instituições.

Até 2014, o grupo recebia doações de instituições internacionais para a manutenção das atividades. Desde então, o dinheiro para o sustento da iniciativa vem da venda das obras: uma parte fica para o artista e outra vai para o “cofre” do Arte Moris.

Da criação à exposição

O processo criativo dos artistas do Arte Moris é marcado pela identidade histórica e cultural do país. Estão quase sempre presentes elementos como o Tais, a indumentária e outros objetos tradicionais: kaebauk (adorno em forma de meia lua), belak (medalhão tradicional), tambores, surik de liurai (espadas dos antigos reis), etc.

A arte também combina as representações culturais com os produtos agrícolas, como o café ou as plantações de arroz. Outros temas misturam a riqueza natural do país com questões políticas, como em alguns quadros que mostram a evocação do mar e as disputas pela fronteira marítima.

O respeito pelo passado recente é um dos temas mais marcantes na produção artística do Arte Moris, como a valorização dos ex-guerrilheiros e dos líderes históricos que lutaram durante 24 anos para defender Timor-Leste contra os invasores.

O contexto em que o Arte Moris foi criado e as suas obras, cheias de elementos históricos, culturais e políticos, chamaram a atenção de visitantes nacionais e internacionais. Tornaram-se habituais as visitas ao antigo edifício, em Comoro, que os artistas carinhosamente chamam de museu.

Desde que foi criado, o Arte Moris realizou eventos e competições nas escolas e nas comunidades. O grupo já formou jovens artistas plásticos (pintores e escultores), músicos, atores e fotógrafos. Estima-se que, a cada ano, o coletivo receba 150 formandos.

As exposições passaram, cada vez mais, também a fazer parte da agenda. O Instituto Camões reuniu os artistas do Arte Moris, algum tempo depois da primeira aparição em público no CCD, com outros artistas seniores timorenses. Desta vez, a exposição realizou-se no Hotel Timor. Depois disso, a cada evento no país, seja em iniciativas de arte, ou na celebração de datas marcantes, o Arte Moris passou a ser presença assídua.

A primeira ida do grupo para o exterior aconteceu em 2004, ocasião em que o Arte Moris foi à Austrália. Foi uma visita com um objetivo muito concreto, que permitiu conhecer melhor o mercado da arte. “Não realizámos exposições. Fomos a Darwin para leiloar algumas obras”, contou Iliwatu.

Paixão pela arte e experiências pessoais

Falando sobre o gosto pela arte, quatro artistas do grupo expressaram a mesma ideia: de que desde crianças começaram a ter paixão pela área. Se Iliwatu e Tony estão com o Arte Moris desde o seu início, Emelda Reis e Evang Pereira aderiram ao coletivo mais tarde.

A manhã avança, o trânsito abranda e a conversa com Tony continua ao ritmo de café e cigarros. Conta que se envolveu na vida artística porque conheceu alguns familiares artistas, da parte da mãe. Durante a ocupação indonésia, o artista, ainda criança, colaborou com os adultos ao pintar cartazes de manifesto contra o inimigo.

“Naquela época, pintava as letras que alguém já tinha desenhado a lápis. Por exemplo fazia cartazes com as frases, ‘mate ka moris ukun rasik aan’ (vivo ou morto, queremos a nossa independência) ou ‘Timor Hakarak ukun rasik aan’ (Timor quer a sua independência) e ‘Viva Xanana’”, disse Tony Amaral, entre alguns bafos de cigarro mais apressados.

Estas pequenas tarefas, executadas com a (ainda) inocência de uma criança, deram coragem a Tony Amaral para explorar mais esta paixão pela pintura. “Nasci e cresci na era da ocupação indonésia. Por isso, escolhi esta profissão para expressar os meus sentimentos, bons e maus, que me acompanham desde a infância”, justificou.

No ano passado, o evento Hasoru Malu, que significa “encontro”, na Fundação Oriente, juntou artistas de diversas áreas artísticas, para apresentarem as suas obras e promoverem debates sobre o mundo da arte.

Levado pelo espírito daquele que foi o maior evento artístico em Timor-Leste, dado o número de visitantes e o impacto que teve, Tony Amaral decidiu pintar, no muro de uma casa em frente à Fundação Oriente, a imagem de uma menina com um Tais vestido e as mãos colocadas no tambor, como se estivesse a tocar.

Imagem de timorense em frente à Fundação Oriente foi inspirada numa foto tirada de uma menina em Venilale, contou o artista Tony Amaral/Foto: Arquivo Pessoal

O artista inspirou-se numa foto que tirou a uma menina em Venilale, no município de Baucau, quando lá foi visitar uma escola. “Naquele momento, as jovens estudantes realizaram uma cerimónia de dança cultural para nos receber. Foi aí que a fotografei”, explicou.

Mural situado em frente à Fundação Oriente, em Díli/Foto: Timor Post

Iliwatu usava lápis para pintar imagens na capa do caderno. Também colocava moedas debaixo do papel e pintava por cima, destacando o relevo da moeda. “Andava no ensino secundário e, um dia, o meu primo falou-me de um grupo que andava a pintar na zona de Colmera. Procurei-os e finalmente juntei-me a eles”, contou o responsável do Arte Moris.

Emelda Reis andava na primária, mas sempre gostou de arte. Conta que espreitava os seus irmãos quando eles pintavam. Em 2003, ouviu dizer que o Arte Moris estava a dar cursos de arte. “Comecei logo a frequentar as formações”, disse a artista, que foi uma das primeiras alunas do coletivo. Hoje, Emelda é também formadora e sente-se feliz com a oportunidade de ensinar os jovens pintores.

Evang Pereira, coordenador artístico do Arte Moris, apaixonou-se pela arte aos 8 anos. Quando tinha 14 e andava no ensino básico, viu um anúncio na televisão timorense, em que o Arte Moris tinha inscrições abertas. Aproveitou a  oportunidade para participar numa das formações e mantém a ligação ao grupo até aos dias de hoje.

“Não sabia onde era o Arte Moris. Não sabia como encontrar o formulário de inscrição. Certo dia, o meu colega, que já tinha um formulário preenchido com os seus dados pessoais, lembrou-se de tapar o nome com uma tira de papel branco, tirámos uma cópia e, por fim, consegui preencher essa cópia com os meus dados e entregar o documento. Fui chamado pouco tempo depois, fiz a formação e ali fiquei até hoje”, contou Evang, com um sorriso nostálgico.

“Na formação, éramos cerca de 60 e havia apenas uma mulher. Fomos divididos em duas turmas, uma de manhã, outra de tarde.”, lembrou Evang. O jovem artista começou a residir naquele momento no Arte Moris enquanto ia fazendo o seu percurso escolar, desde o ensino básico, até terminar a licenciatura.

Com o grupo, Evang, que é formado em Arquitetura pela UNPAZ, aprendeu a desenhar e a pintar. Recentemente, o artista expôs o seu trabalho no Centro Cultural de Díli, situado no prédio da embaixada de Portugal em Timor-Leste.

O artista Evang Pereira durante a sua exposição no Centro Cultural da embaixada de Portugal em Timor-Leste/Foto: Joana Silva (Timor Post)

O fim de um espaço (que quase destruiu o maior património de arte contemporânea timorense)

Em meados de 2021, o Ministério da Justiça mandou uma carta de notificação para o Arte Moris, a exigir que todos saíssem daquele espaço no prazo de 30 dias, porque aquele lugar iria ser utilizado pelos veteranos.

“Na carta lia-se uma expressão que nos chocou: ocupantes ilegais”, contou Iliwatu, angustiado. A carta contradizia o acordo estabelecido inicialmente com o Secretário de Estado Virgílio Smith. No entanto, por saberem que era um lugar provisório, que pertencia ao Estado, e por terem sido avisados antecipadamente, o grupo não teve outra solução senão colaborar.

“Percebemos o motivo da decisão, mas, se os veteranos são parte da sociedade deste país, o nosso grupo também pertence a esta sociedade”, disse, indignado, o presidente do coletivo.

Antes de serem despejados na rua, antes de verem as suas obras serem tratadas como lixo, os artistas do Arte Moris ainda viram o governo apresentar uma solução que cedo se percebeu que não seria a melhor.

“Indicaram-nos um novo lugar, em Bebora. Só que aquele espaço não tinha condições. Eram armazéns para guardar arroz. Além disso, havia pessoas a residir naquele local e vários cemitérios ali ao lado. Ainda levámos com as reclamações dos habitantes locais a exigir que pagássemos as obras em vários edifícios”, afirmou Evang.

Naqueles meses, escreveram cartas à Secretaria de Estado para Arte e Cultura, tentaram falar diretamente com os decisores, assistiram a mensagens de apoio nas redes sociais, de artistas e de outras entidades, contudo o esforço foi em vão. Nos primeiros dias de dezembro de 2021, começou oficialmente o desmantelamento do Arte Moris, em Comoro.

Aquilo a que se assistiu naqueles dias foi descrito por José Ramos-Horta, a meses de ser eleito presidente da República, como um crime contra o património artístico.

Exigiram-se explicações, entre as canções tocadas em tom de raiva pelos músicos, junto aos portões de um edifício que já não lhes pertencia, mas onde jazia uma parte das suas vidas. Nada mais podiam fazer. “Porquê é que os veteranos não foram para outro lugar? Porquê o Arte Moris?”, conta Emelda, visivelmente emocionada.

“Vimos os funcionários do Secretariado das Terras e Propriedades tirarem os quadros, muitos deles com a imagem de antigos combatentes, os equipamentos, os materiais para pintar, os documentos administrativos e despejarem-nos na rua, como se fossem lixo.  Isto foi como se nos arrancassem o coração”, sublinhou Evang.

O Timor Post tentou falar com alguns responsáveis das Terras e Propriedades, porém, rejeitaram por não acompanhar detalhadamente o assunto, uma vez que o caso foi da responsabilidade de chefias anteriores.

Um novo espaço, um novo desafio

Atualmente, as coleções do Arte Moris estão parcialmente instaladas no novo edifício, localizado em Aitarak Laran. O espaço foi atribuído por Ramos-Horta e situa-se atrás do Palácio Presidencial. “As novas instalações têm um espaço limitado. Por enquanto só usamos as salas para pintar. Ainda não conseguimos retomar grande parte das atividades, como as aulas”, contou Evang.

No futuro, o Arte Moris pretende adquirir um terreno para construir o próprio edifício. “Queremos um espaço nosso, por direito. Mesmo que construamos a casa com palha, garantimos que não voltaremos a ser expulsos”, concluiu Iliwatu

A conversa com Tony Amaral aproxima-se do fim e as conclusões do artista parecem ser a linha que une todos estes artistas timorenses.

“Encontramos nos desafios a motivação para comunicar com o mundo através da arte”, diz, num tom filosófico. Ter o poder de educar pela arte é um caminho para um mundo melhor, acredita Tony. A arte incomoda, muitas vezes, “mas também educa, desenvolvendo capacidade crítica, ensina a não ter medo de comunicar aquilo que não está bem”, observou o artista.

 

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