Fiquei chocado quando, em criança, vi os meus colegas a trabalhar como adultos

Augusto Sarmento - Cultura · Economia
Reportajen : Joana Silva
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Olávio considera que, em Timor-Leste, apenas as crianças que vivem numa família economicamente estável têm os direitos respeitados/Foto: Arquivo Pessoal

No mês passado, o Instituto para a Defesa dos Direitos da Criança (INDDICA) realizou um diálogo no Centro de Convenções de Díli (CCD), onde crianças e jovens fizeram parte da discussão. O porta-voz destes, Olavio Almeida Araújo, apresentou aos líderes presentes, entre eles o presidente da República José Ramos-Horta, alguns problemas enfrentados pelas novas gerações.

Motivado pela indignação que sentia desde muito cedo, ao ver colegas fora da escola para trabalhar, Olavio tinha apenas 16 anos e já pertencia ao movimento Aliansa Labarik Feto (Aliança de meninas, em português), uma organização tutelada pelo Plan International de Timor-Leste, que tem o objetivo de empoderar menores, sobretudo as meninas marginalizadas. A Aliança promove discussões públicas sobre direito e advocacia, liderança, planeamento familiar, literacia digital e igualdade de género.

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O jovem escolheu estudar na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Timor Lorosa´e (UNTL) para defender a justiça de Timor-Leste. “A maioria da população do país não conhece nem entende a lei. Neste momento, são as elites que têm um pouco de conhecimento sobre a legislação, mas discriminam os cidadãos”, observou Olavio.

Timor Post (TP) – Como e quando surgiu a vontade de defender os direitos das crianças?

Olavio Araújo (AO) – O motivo que me levou a defender os direitos das crianças é assim: as crianças são pessoas. Também eu sou uma criança. Com a minha idade, 19 anos, passei legalmente a ser um adulto, mas, no fundo ainda sinto que pertenço à zona das crianças. Sabemos que, em Timor-Leste, há muitas desigualdades contra os direitos e deveres das crianças no dia-a-dia. Por exemplo, muitas crianças desperdiçam toda a sua infância a trabalhar como um adulto para ajudar a economia familiar.

Por essa razão, em 2019, decidi envolver-me no movimento Aliansa Labarik Feto para combater a discriminação e o desrespeito pelos direitos das crianças. Sinto uma forte empatia e vontade de defender os meus colegas marginalizados, que não têm voz.

TP – Para o Olavio, o que é o direito das crianças, principalmente das crianças timorenses?

OA – As crianças têm os mesmos direitos básicos dos adultos. Elas devem gozar os seus direitos que lhes permitam participar, com a devida proteção, na vida em sociedade.

TP – Será que as crianças timorenses gozam os seus direitos de brincar e de ir à escola?

OA – Não há muitas crianças que gozem de todos os seus direitos. Apenas as que vivem numa família economicamente estável. As famílias que têm poucos rendimentos acabam por sacrificar as crianças e enviá-las para a rua, para vender e trazer mais dinheiro para casa.

TP – Pode dar alguns exemplos das dificuldades que as crianças timorenses enfrentam na sociedade?

OA – São muitos os problemas que as crianças enfrentam. Por exemplo, nem todas vão à escola e, pior ainda, são obrigadas, como disse há pouco, a trabalhar para apoiar nas necessidades da família. Elas não usufruem de cuidados de saúde dignos, nos hospitais, tanto ao nível de equipamentos, como de recursos humanos especializados, de pediatria, por exemplo. Quando chegam à adolescência, muitos jovens abandonam os estudos porque as famílias não podem suportar as despesas.

TP – É verdade que a maioria das crianças da Região Administrativa Especial Oecusse Ambeno (RAEOA) anda a trabalhar nas ruas de Díli, a vender ovos, manga, entre outros produtos?

OA – Sim, é verdade. A meu ver, a maioria dos casos de trabalho infantil na nossa capital é de crianças da RAEOA.  Elas carregam ovos cozidos, banana frita e andam de baixo do sol perto do Timor Plaza, ou nas zonas mais turísticas da cidade.

TP – Já falou com alguma destas crianças da RAEOA? Porque é que elas estão nesta situação?

OA – Sim. Um dia, perguntei exatamente isso a uma criança do Oecusse, aqui em Díli. Ela disse que se não andasse a vender, não conseguiria pagar os estudos.

TP – A discriminação existe e afeta as crianças. Ondem é que sente que as crianças são mais discriminadas, a vender na rua ou nas escolas?

OA – Há muitas diferenças nas formas de discriminação, tanto na rua como na escola. Na rua, podemos ver que existe muita discriminação. Por exemplo, algumas crianças dizem que os colegas que andam a vender produtos não têm capacidade, porque não vão à escola. Alguns adultos, que se sentem superiores, dizem mesmo que estas crianças que vendem na rua não são inteligentes.  Na escola, acho que não se sente tanta discriminação, porque, no fundo é tudo estudante.

TP – Já tiveram situações, na Aliança Labarik Feto, em que as crianças apresentaram queixa ou procuraram apoio?

OA – Sim. Já tivemos muitas crianças que fizeram queixa diretamente à Aliança, ou a colegas que estão envolvidos no grupo. Quando isso acontece, na reunião semanal, colocamos o assunto em cima da mesa para o discutir.  Também procuramos essas crianças para conversar.

TP – Como é que o Olavio tomou consciência do trabalho infantil em Timor-Leste? Será que os governantes vêm esta realidade com os mesmos olhos?

OA – Sou um ser humano, que tem sentimentos. Fiquei chocado quando, em criança, vi os meus colegas a trabalhar, como adultos. Eles deixavam de brincar para trabalhar e ajudar a família. Depois vejo os nossos governantes a assobiar para o lado, a fingir que não veem esta realidade e que, por isso, sentem que não é um problema que mereça ser resolvido.

TP – Nos últimos anos, a maior ferramenta para erradicar a discriminação e o desrespeito pelas crianças tem sido sob a forma de estudos e cerimónias.  Acha que isto é suficiente para mudar a mentalidade da sociedade timorense?

OA – É verdade que são muitas as atividades como seminários, conferências, ações de sensibilização, estudos, etc. Acho que acabam por ser alternativas para mudar o estigma da sociedade em relação aos direitos da criança, pelo menos, para que sejam encaradas como o futuro do país.

TP – Quer sugerir outras alternativas, além das atividades que referimos, para mudar a mentalidade da nossa sociedade? Que mais pode ser feito para garantir os direitos das crianças?

OA – É preciso que cada pessoa consiga refletir, pensar no que está mal, e aí sim, tentar mudar algo na sociedade. Além disso, o Estado deve ter um papel mais interventivo. Não basta criar leis de proteção das crianças. O elevado desemprego, num país com uma população ativa muito jovem, é um problema que afeta quem não consegue encontrar um trabalho digno e, consequentemente, leva a que sejam também as crianças a contribuir para a economia familiar. Devem ser criados postos de trabalho, devem ser criados mais apoios do Estado para as famílias desfavorecidas, para que consigam garantir aos seus filhos uma infância tal como ela deve ser vivida.

TP – Sempre que se discutem os problemas do país, e este das crianças e do trabalho infantil é apenas um deles, a questão do OGE (Orçamento Geral do Estado) vem sempre à conversa. O Presidente da República, José Ramos-Horta, disse no evento que decorreu em fevereiro, no CCD, que o problema não é do orçamento, mas da execução. Concorda com o Presidente?

OA – É a opinião do nosso chefe de estado. Para mim, sim, há alguns falhanços na execução do OGE. Temos de considerar também o pouco conhecimento dos nossos governantes, que não conseguem executar bem o dinheiro público. Noto que alguns líderes não trabalham dentro da sua área de estudo. Desempenham funções simplesmente porque foram nomeados pelos partidos, não tanto pelo mérito, mas pela influência que têm. Tudo isto dificulta muito a evolução desta jovem democracia.

 

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