Motorista de microlete concilia histórias e esforço com a vontade de ser enfermeiro

Mario da Costa - Economia
Reportajen : Joana Silva
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O condutor de microlete, Anito Gomes: “Para ganhar dinheiro tenho de ser simpático e honesto” – Foto: arquivo pessoal

Por volta das duas da tarde de um domingo soalheiro, sob um sol abrasador que aquece a cidade de Díli, o motorista Anito Gomes, com as mãos firmes no volante, conduz a microlete número 02 em direção a Becora.

Há quase sete anos que o rapaz de 28 anos assegura o transporte de passageiros na sua microlete na capital de Timor-Leste. O ofício é o que garante o seu sustento e o da família.

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Atualmente, Anito concilia a atividade com o curso de Enfermagem na Universidade de Díli (UNDIL). “Já sei como posso arranjar trabalho para comprar as minhas coisas. Não quero pedir mais dinheiro aos meus pais”, afirmou.

Para conhecer mais um pouco do seu dia-a-dia, acompanhei o jovem em mais uma jornada. Em plena Avenida de Bispos de Medeiros, entrei no veículo e sentei-menum dos bancoscom capacidade para acomodar até sete passageiros. A partir daí, Anito começou a falar sobre as condições de trabalho e o modo de vida dos motoristas de microlete, o meio de transporte mais popular de Timor-Leste.

Rotina do motorista

O jovem disse ter escolhido a profissão por vontade própria. “A melhor forma de não ficar desempregado dentro do meu próprio país é procurar meios alternativos de trabalho. Para ganhar dinheiro tenho de ser simpático e honesto”, ressalta.

A maioria dos motoristas de microlete não é proprietário dos veículos: esses trabalhadores têm de pedir emprego aos proprietários dos automóveis. Geralmente, os motoristas apresentam a carta de condução e responsabilizam-se por qualquer ocorrência que venha a ocorrer com o meio de transporte durante o trabalho. As duas partes selam acordo verbal ou por escrito.

A rotina diária de Anito inicia sempre às 7h00 e termina por volta das 17h45 ao longo da semana. “Se calha a ganhar 75 dólares num só dia, tenho então de entregar diariamente 33% ao patrão, para que ele me possa pagar novamente. As sobras são para a manutenção do veículo e para abastecer a microlete com gasolina”, contou.

O homem recebe 150dólares por mês. Com esse valor, paga as propinas da universidade e também a dos seus irmãos. Às vezes, transfere dinheiro para os seus pais que vivem na montanha.

Durante seis anos, a sua microlete número 10 operou na zona de Comoro devido à proximidade da sua residência. Porém, desde o início deste ano, o meio de transporte tem assegurado a ligação entre o centro de Díli e Becora, na zona leste da capital.

Um certo dia, em pleno mês de janeiro, por volta das 7h00, a microlete de Anito desempenhou momentaneamente as funções de ambulância. A meio do itinerário habitual, uma mulher grávida, já perto de dar à luz, entrou no veículo, desesperada. “A senhora não aguentou e deu à luz aqui mesmo na microlete”, disse, com o olhar atento no trânsito. Logo depois, apontou e disse: “olha, aqui fica o Centro de Saúde onde ela não conseguiu chegar a tempo”.

Enquanto ainda falava, um passageiro tocou numa barra de ferro, sinal de que tinha chegado ao seu destino. Depois de descer da microlete, o jovem motorista voltou a perguntar: “Onde paramos a nossa conversa?”. Respondi-lhe que estávamos a falar da mulher grávida.

“A minha especialidade agora é conduzir, mas daqui a alguns anos quero que seja o corpo humano”, disse.

Em 2018, Anito começou a estudar enfermagem, curso que escolheu por decisão conjunta da família, confessou. “Tenho de gerir bem o tempo para que uma das atividades não fique para traz. Se de manhã tenho aulas, à tarde conduzo”, contou, ao mesmo tempo que buzinava.

Anito relatou que é um jovem com sorte, porque os colegas da universidade,conhecedores do seu dia-a-dia particularmente difícil,oferecem-lhe apoio para prosseguir os seus estudos.

Faltam semáforos e menos estacionamentos

Do centro de Dili até ao terminal de Becora, o motorista transportou, naquele domingo, sete passageiros. Em dias de semana, o número chega a duplicar. No percurso inverso, rumo ao coração da capital, o trânsito começa a ficar caótico. “É comum os engarrafamentos no cruzamento de Culuhun por falta de semáforos que dão preciosas indicações aos motoristas. Jáem Audian, não existem lugares de estacionamento suficientes para que os motoristas possam estacionar os seus carros. Muitas vezes, deixam-nos numa das faixas de rodagem da estrada”, reclamou.

Anito contou ainda que deixa que dois passageiros ocupam a porta da microlete. “Todavia, se avistar a presença da polícia, estes mesmos passageiros pulam para o interior do veículo, porque senão podemos ser multados. Não permito que mais de três pessoas estejam penduradas por recear uma eventual queda”, revelou.

Numa paragem em Bidau, o motorista buzinou para que duas mulheres pudessem entrar na microlete. Anito indicou o lugar para uma delas se sentar. Chamou-a de abin, em tétum, irmã. Em Timor-Leste, as pessoas costumam tratar-se desta forma, como forma de respeito. Mas com o volume da música bem alto, um ruído ensurdecedor fez com que a abin não se sentasse no lugar indicado pelo motorista.

O som da buzina da microlete conduzida por Anito é presença obrigatória em quase todo percurso. Sempre que encontrava engarrafamentos, pessoas, ou mesmo sem nenhum motivo aparente, a buzina soava incessantemente. O mesmo acontecia com o volume bem alto das músicas que tocavam num ritmo frenético. Assim que uma música termina, começa outra. As músicas são multiculturais: é possível identificar ritmos em tétum, bahasa, português e inglês.

Momentos difíceis

Quando a pandemia da covid-19 alterou o dia-a-dia em Timor-Leste, a exemplo do que aconteceu no resto do mundo, Anito viu-senuma situação muito complicada.

“Antes da pandemia, costumava ter dinheiro todos os dias graças ao meu trabalho. De repente, quando fui impedido de trabalhar, fiquei sem ideia do que fazer”, recordou. Em 2020, o Governo atribuiu subsídiosà população e a alguns trabalhadores, como os motoristas. Anito, porém, acabou por nada receber. “Eu estava na montanha a construir a casa e não consegui reunir os documentos a tempo”, justificou.

Neste ano, com a subida exponencial do preço dos combustíveis, o Governo aprovou medidas urgentes para que os transportes públicos não ficassem com depósitos vazios.

 “Nós recebemos uma senha. Tivemos de a levar e apresentarao posto de abastecimento para colocar combustível no carro. Enchi o depósito uma só vez, com 150 litros”, esclareceu.

Numa altura em que se iam despedir, o motorista contou um caso peculiar sobre os seus hábitos alimentares durante o expediente.

“Às vezes, como duas vezes por dia. A primeira por volta das 10h00. Se ainda sinto fome, então às duas da tarde como de novo”, gargalhou.

Para o futuro, Anito pretende aposentar-secomo motorista. “Depois de concluir o meu curso, quero arranjar um emprego na minha área de formação académica”, concluiu, ao som de mais uma buzinadela.

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